sexta-feira, 9 de abril de 2010

Questão de tempo


Já vivemos o quinto dia de uma tragédia que parece não ter fim. As chuvas que castigam o Rio de Janeiro e cidades vizinhas como Niterói e São Gonçalo desde a segunda-feira (5) são o manifesto de uma tragédia anunciada, conhecida da população e das autoridades. A devastação das encostas pelas ocupações irregulares, quase sempre patrocinadas – com ação ou omissão – pelo poder público, responde pela quase totalidade dos 200 mortos registrados até este momento, número com perspectiva de aumento nas próximas horas.

O prefeito do Rio, Eduardo Paes, acena com um decreto determinando remoções imediatas, e a força se preciso for, em áreas de risco. Uma ação óbvia, decente e necessária, mas que sempre encontrou grande resistência entre os políticos e administradores públicos, preocupados em não desagradar seus cidadãos-eleitores. Histórica e histericamente, foi mais fácil adotar a maquiagem do favela-bairro, o faz-de-conta da urbanização que, dizem, tem prêmios mundo afora como exemplo de resgate da dignidade (?!) da população favelada.

Jorge Roberto Silveira, prefeito de Niterói, administrador sem maior expressão que a vida toda usou o sobrenome do pai como marketing político e muleta para sustentar-se na vida pública, anunciou não pretender isentar-se de responsabilidade (digno, porém inócuo), mas disse não ter conhecimento de que o Morro do Bumba se assentasse num antigo aterro sanitário. Apesar dos inúmeros avisos e estudos de técnicos da prefeitura a respeito, ao longo de seus oito anos no exercício do mesmo cargo, em duas administrações anteriores. Nossa excelência, por desconhecimento de causa ou omissão mesmo, fomentou a criminosa invasão do terreno insalubre, contribuindo com a pavimentação de ruas e a entrega cinematográfica de uma caixa d'água trazida de helicóptero, bem ao estilo do governo que implantou escolas de pré-moldados como outdoors dentro dos quais se pretendeu educar crianças.

O reassentamento – chamemos assim, porque expressa melhor o que é correto se fazer – voltou à baila e está na ordem do dia da população. Talvez não daquela que ora se vê atingida em seus barracos, que reivindica a conveniência de ficar, propondo que o governo gaste recursos (para os quais não contribui) em 'urbanização', sob a proteção do argumento da necessidade de continuar a viver no mesmo local por causa do trabalho. Mas sim para os cidadãos que, se não sofrem diretamente com o problema e mantêm-se morando em condição segura, se compadecem do sofrimento do seu semelhante, sem contudo perder o senso crítico de que é preciso fazer alguma coisa para resolver o problema.

Favelas em encostas e à beira de cursos d'água representam perigo iminente, para quem vive nesses locais e para a coletividade, em função dos efeitos (como estamos vendo, devastadores) que podem sofrer, advindos da ocorrência de transtornos naturais. Favelas, mais ainda, onde quer que estejam, não são lugar digno de se viver. Se a sujeição a esse tipo de vida, por percalços econômicos, constitui para o favelado uma violência para consigo mesmo, a circunstância de permanecer favelado pelo mero interesse do homem público em manter firmes as rédeas sobre seu curral eleitoral é algo absolutamente nojento.

Dá para se perceber que é este o momento de se mudar, de fato, o rumo da história do Rio de Janeiro, menos pela contratação da Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos, mas pelo compromisso com a dignidade do cidadão carioca? Será que o drama dos mortos, desalojados e desabrigados é capaz, desta vez, de sensibilizar os governantes e os legisladores para a necessidade de se sepultar em definitivo a complacência para com a favelização da cidade? Podemos acreditar que os favelados têm o direito de ser cidadãos, entre outras coisas conquistando moradia decente, com a ajuda sincera daqueles que se elegeram prometendo dias melhores a todos que vivem aqui?

A excepcionalidade da chuva, que veio inclemente nesse início de outono e conquistou o título de maior desastre já acontecido no Rio, não desmerece a percepção de que o problema é realmente grave. A fragilidade e a inconveniência das favelas já são velhas conhecidas de todos. A exposição dramática deste quadro, por sua vez, com a ferocidade que estamos testemunhando, era apenas uma questão de tempo.


Boa Tarde, Rio!

Um comentário:

Anônimo disse...

Amigo Marcelo,

Fico muito feliz ao notar que não estamos sozinhos nessa dura empreitada que é a de vislumbrar para a nossa querida cidade dias melhores. Os tristes acontecimentos vividos pela cidade e pelo Estado sinalizam que as preocupações com o desordenamento do solo urbano e a sua crescente deterioração tinham fundamentos. Quando escrevi aqueles dois artigos em O Globo, um deles prestigiado pelo seu valoroso comentário, em que defendia a remoção das favelas e a construção de polos urbanísticos infraestruturados, o fiz para afastar modelos inspirados em oportunismos e demagogias. Fique certo amigo, que em breve teremos uma resposta legislativa eficaz à crescente favelização que já se torna insuportável, não por simples decreto, mas por lei ordinária, que quando for discutida mobilizará todo o País. Agradeço-lhe pelos bondosos e imerecidos comentários ao meu singelo artigo sobre o Metrô. Continuemos na luta, mesmo que essa seja inglória e nos roube um pouco de nosso precioso tempo.
Do amigo,
ALMIR DA SILVA RAMOS