terça-feira, 27 de outubro de 2009

Reformar é preciso

  
Na placa de obra, a descrição: construção da escola de balé 'das comunidades'. Dançando para não dançar, se vi direito de longe, é o nome da tal escola. O prédio, que vejo abandonado desde que me conheço por gente, fica no vértice formado por Mem de Sá com Frei Caneca, onde a reforma come solta, dando outra cara, saudável, ao imóvel. Mas, se a recuperação do edifício me deixa contente, o uso previsto me incomoda. E, ainda por cima, faz pensar.

Por que uma escola específica para alunos 'da comunidade'? (Aliás, por que 'comunidade'? Que conceito é esse? Ainda seria um eufemismo para favela?) Por que não construir uma escola que seja para todos, inclusive os alunos 'da comunidade', em vez de confiná-los a esse, talvez possamos chamar assim, gueto cultural?

Nem mesmo portadores de necessidades especiais são tratados com esse espírito de exclusão hoje em dia, à exceção daqueles que possuam uma especificidade que recomende um tratamento diferenciado. O respeito às diferenças e a integração social nunca foram mutuamente excludentes; ainda mais no plano econômico.

Segregar em vez de integrar e inverter a ótica da leitura: privilegiar aquele que é desfavorecido, para dar-lhe um status político carente de sustentação e de significado. Um jeito triste de tratar as pessoas. Sem dignidade. Essa mentalidade precisa mesmo mudar.


Boa Tarde, Rio!

Esperando o ônibus

  
Quase uma semana atrás, no dia 21 (quarta-feira), um detalhe curioso me chamou a atenção: na foto de capa do jornal Extra, diante de um ônibus da linha 636 (Saens Peña - Gardênia Azul), sete pessoas formavam uma barreira na Rua Barão do Bom Retiro, no Engenho Novo – junto aos acessos ao Morro de São João, favela envolvida no confronto com o Morro dos Macacos, de Vila Isabel, que lhe fica próximo.

Quatro mulheres, uma das quais brandindo um chinelo e outra, com uma criança de colo, provavelmente com 1 ano apenas. Dois meninos, de seus 8 e 12 anos, talvez. Pessoas que não se imaginam na linha de frente de uma baderna, mas que certamente estavam ali para iniciar uma. Com que propósito e a mando de quem? Perguntas que não querem calar, nem sob forte ameaça.

Perguntas que suscitam outras, como por que apenas ônibus são visados, nessas situações de perturbação da ordem? Alguém já viu porem fogo, especificamente, em vans ou kombis? Curiosamente, não. Haveria alguma relação oculta nessa mera observação, coisa até que a imprensa já houvesse notado mas não tivesse tido a coragem de apontar?

Aliás, curiosa é a imprensa. Quando entrevista alguém, em local público, faz um esforço absurdo em esconder eventuais logomarcas que apareçam em segundo plano, em função de sua própria localização, chegando por vezes à pieguice de jogar (d)efeitos visuais para distorcê-las. Mas não se esquiva de discorrer sobre facções criminosas e seus chefes, dando-lhes a todos nomes, sobrenomes e apelidos, num marketing que a boa e velha ética manda evitar.

E parece seguir a vida nas cercanias das favelas, redutos conhecidos do tráfico e de marginais em geral. Aos trancos e barrancos, dentro do que o humor dessa gente permita.


Boa Tarde, Rio!

sábado, 17 de outubro de 2009

Cidade sim, favela não

  
O dia de hoje é particularmente significativo para que eu inaugure mais este canal de expressão de ideias, o blogue 'Rio Sem Favela'. Neste sábado chuvoso, 17 de outubro de 2009, a Cidade do Rio de Janeiro assistiu a algumas das cenas mais bizarras de sua crônica policial. Está sendo – passa um pouco das nove da noite, enquanto escrevo e acompanho as notícias pela internet – um dia sem precedentes de violência, perpetrada por vagabundos contra esta cidade que amamos e na qual tem sido penoso sobreviver. Violência que chegou ao abate de um helicóptero da Polícia Militar, que dava cobertura a uma operação que visava a evitar a tomada de uma favela de Vila Isabel por traficantes de uma facção rival à que hoje domina o lugar. Ônibus, mais de 10 até o momento, foram incendiados em pontos diferentes da Zona Norte, onde o conflito eclodiu, em ações que parecem tão bem orquestradas quanto as que aterrorizaram São Paulo numa sexta-feira à noite, 12 de maio de 2006 – um enredo que rendeu a produção que tiveram a capacidade de alcunhar de 'arte' e enviar como representante brasileiro na próxima disputa pelo Oscar de melhor filme estrangeiro.

Os acontecimentos revelam dois fatos que parece ainda não terem sido devidamente consolidados nas cabeças das pessoas em geral, especialmente nas daquelas mais humildes, nas dos 'ólogos' (os 'sábios' de plantão, cuja sabedoria sustenta-se, em parcos alicerces, quando muito em sua formação profissional) e nas dos políticos, para variar.

Um é a percepção de que a Polícia existe para proteger o cidadão. Todas as suas ações, independentemente de um ou outro método menos comum ou de um eventual fracasso, são estruturadas em benefício da coletividade. De todos nós, afinal. Polícia não mata: quem mata é bandido. Polícia não agride: quem agride é bandido. Polícia não viola leis: quem viola leis é bandido. Excessos podem até ser verificados, mas não estão imunes a investigação rigorosa e punição devida. Por menos que se enxergue isso, culpa da confusão – deliberada ou não – que os noticiários fazem na narrativa de suas versões dos fatos, a população, e isso inclui as pessoas que ainda se julgam 'de bem' e que sobrevivem em favelas, precisa acreditar na decência da instituição policial. A Polícia é do bem. Ela é feita de cidadãos como nós, que um dia se propuseram a aprender a defender a sociedade, abrindo mão da vida tranquila e de uma condição material mais favorecida, coisas que desejamos o tempo todo para nós mesmos.

O outro fato é a constatação de que favela não é lugar de se viver. Porque lá não se vive; sobrevive-se, na melhor das hipóteses e da pior maneira possível. Favela, quase sempre, é resultado de uma invasão, aspecto que já lhe torna indigna. Tudo é precário e nada é bom. O poder público costuma ser ausente e aí é que surge o problema: o bandido esperto sabe disso e se dispõe a suprir as carências do lugar. Porém isso tem um preço, pago através de omissão, conivência, submissão. Uma verdadeira escravidão moderna, para a qual, até hoje, pouquíssimos homens públicos (prefeitos, governadores, presidentes, vereadores, deputados e senadores) propuseram alforria. Porque a eles talvez interesse manter escravos.

Erradicar favelas é dar a liberdade de viver às pessoas que estão lá. É vê-las como cidadãos, de fato, fazendo com que a chance de morar numa casa digna, fora do ambiente favelizado, constitua a conquista de sua cidadania. Quase como dar vida a quem não a tem ou a tem, mas não tem como desfrutá-la.

Maquiar favelas não resolve e serve apenas para enganar aqueles que preferem ser enganados, porque não muda a essência do lugar em que se está. De nada servem passadiços pavimentados, se o caminho é íngreme, estreito e tortuoso e não podem chegar até lá veículos de serviço ou de socorro. Veículo nenhum chega, aliás. Nem planos inclinados, nem teleféricos, nem caixas d'água levadas de helicóptero. Nada disso serve, se persiste a edícula tosca, insalubre, sem conforto, que não mudará sua condição de barraco de favela. Mesmo que ganhe mais uma, duas, três ou até quatro lajes, como vem ocorrendo atualmente no Rio, sob as barbas das autoridades sem autoridade.

Mudar isso é preciso. Mais do que isso, é urgente. E é possível, ao contrário do que os pessimistas e os convenientes de tocaia apregoam. O desenvolvimento urbano do Rio de Janeiro prova isso, numa cronologia de obras e realizações que respondem hoje, em muito, pelo aspecto que a cidade possui. A recomposição da Floresta da Tijuca, ordenada na época do Império, o desmonte dos morros do Senado, de Santa Teresa, além dos dois mais célebres, do Castelo e de Santo Antônio, no Centro, são sólidos argumentos que sustentam e perguntam: como uma cidade que conseguiu tudo isso não pode prover habitação digna aos seus pobres, com a erradicação das favelas?

A resposta será a razão de ser desta coluna eletrônica, com a qual pretendo contribuir para que sejamos, num futuro imensamente breve, uma cidade que se orgulhe de todas as casas onde seus filhos vivem.


Boa Noite, Rio!